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Apendicite

Descobri que existe certa distância entre o trauma e o ressentimento; um deles é capaz de ir se dissolvendo, de dar espaço à outras memórias e experiências, o outro se impregna nas suas entranhas e se desenvolve dentro de você feito um órgão. Em 2023 fiquei exausta dos traumas e das ruminações. Sigo em eminência de um colapso, porque a tristeza é imensa e há respostas que nunca virão, pedidos de desculpas que nunca se farão suficientes, perdões que não cabem a mim oferecer. A maior das tristezas é a dificuldade de visualizar o que eu fiz do que fizeram comigo e quem eu sou a parte disso; me apavora a ideia de que eu sou apenas um apanhado de histórias que eu conto para mim mesma - ou sobre mim mesma. 

Sabe que eu sempre detestei os arquétipos de guerreiras, deusas, mulheres que só são consideradas incríveis porque transcenderam a humanidade. Um dos meus desejos mais profundos é o direito a ser uma pessoa - falei disso um montão de vezes. Recentemente tatuei o rosto de Deméter, a mãe, e embora seja ela essa criatura mitológica, reconheço-me na fúria capaz de ameaçar a humanidade de fome se roubam de mim aquilo que me é precioso. São as características do que é ser-sujeito que invadem as frestas do meu coração e permeiam a minha vontade constante de existir. 

Não sinto falta da infância, é só essa escassez de instrumentos para deixá-la no passado, fora da jaula, sem que eu me faça repetitiva sobre esse assunto.  Também não me agrada o sonho neoliberal da vida adulta, é altamente frustrante. A sensação é de que o apêndice do ressentimento inflamou e, sei lá, chegou o momento de retirá-lo cirurgicamente, como se tira uma pedra no sapato que te atrapalha a seguir o baile.

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Mil e uma noites

Costumo me fazer repetitiva quanto a alguns ditados que permeiam a minha vida; pensando nisso, tenho sido insistente com o fato de que a tristeza é imensa, uma represa massiva com muralhas em volta. Fato é que as mesmas águas que fixam, também são aquelas que rompem. Me atentei que a existência é um ciclo constante de entrar e sair da caverna: deixamos de enxergar somente as sombras, mas o mundo é rude; nele construo um forte e em seu interior ergo, passo a passo, a minha terra prometida. Nos solos sagrados do meu lindo mundo da imaginação, as águas fixam a certeza de que dias mais leves virão, porém também causam rachaduras nos paredões, porque tenho pressa, a mudança urge impacientemente faz dois mil anos. É possível que eu tenha me deixado iludir, entretanto, através dessa fissura, enxerguei aquilo que se manteve oculto, silencioso, do lado de fora.  Me feriu tanto que a tristeza suprimiu a raiva e eu quis chorar por mil e uma noites. 

Ressentimento

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A escrita da contemporaneidade é dolorida, para mim, no que tende à tristeza. O neoliberalismo (nem tão sorrateiramente assim) se torna uma infiltração gigante na parede do quarto, daquele tipo que o mofo causa alergias respiratórias. Constantemente repito em voz alta que 'estou cansada demais' ou 'eu só trabalho' e, ainda, 'eu não tenho vida antes das duas da madrugada'. Não é totalmente verdade, porque existo em outros horários onde sou outras tantas versões de mim mesma; porém, é somente entre as três e as cinco que me sinto pertencente a narração da minha história particular - a que não envolve outros. Nesse cenário, não fico apenas ruminando as memórias, como também sonho de olhos abertos com o horizonte perfeito que habita a minha imaginação.  Mesmo assim, ainda há verdade nas minhas afirmações, sigo correndo para capturar o tempo e ser, na maior grandiosidade possível, aquilo que dá para ser. Tem quem me diga que dou importância demais ao que é humano - p