Descobri que existe certa distância entre o trauma e o ressentimento; um deles é capaz de ir se dissolvendo, de dar espaço à outras memórias e experiências, o outro se impregna nas suas entranhas e se desenvolve dentro de você feito um órgão. Em 2023 fiquei exausta dos traumas e das ruminações. Sigo em eminência de um colapso, porque a tristeza é imensa e há respostas que nunca virão, pedidos de desculpas que nunca se farão suficientes, perdões que não cabem a mim oferecer. A maior das tristezas é a dificuldade de visualizar o que eu fiz do que fizeram comigo e quem eu sou a parte disso; me apavora a ideia de que eu sou apenas um apanhado de histórias que eu conto para mim mesma - ou sobre mim mesma.
Sabe que eu sempre detestei os arquétipos de guerreiras, deusas, mulheres que só são consideradas incríveis porque transcenderam a humanidade. Um dos meus desejos mais profundos é o direito a ser uma pessoa - falei disso um montão de vezes. Recentemente tatuei o rosto de Deméter, a mãe, e embora seja ela essa criatura mitológica, reconheço-me na fúria capaz de ameaçar a humanidade de fome se roubam de mim aquilo que me é precioso. São as características do que é ser-sujeito que invadem as frestas do meu coração e permeiam a minha vontade constante de existir.
Não sinto falta da infância, é só essa escassez de instrumentos para deixá-la no passado, fora da jaula, sem que eu me faça repetitiva sobre esse assunto. Também não me agrada o sonho neoliberal da vida adulta, é altamente frustrante. A sensação é de que o apêndice do ressentimento inflamou e, sei lá, chegou o momento de retirá-lo cirurgicamente, como se tira uma pedra no sapato que te atrapalha a seguir o baile.
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