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Triângulo da tristeza

Iniciaria essa sentença dizendo que o amor na contemporaneidade é complexo, mas depois de pensar dois segundos sobre isso, percebi que, na verdade, é o tecido social que está rompido, é o ser humano que está quebrado. Ser pessoa na contemporaneidade é complexo. Talvez porque se vive cada vez menos em comunidade, mesmo que ainda existam espaços subversivos — exceção não faz regra. Fato é que me abateu o pensamento de que ser pessoa no contexto neoliberal é contra-hegemônico e, portanto, o amor é penoso. Fiquei chateada, porque encarei com certa distância a ingenuidade da juventude, com os olhos meio cerrados e o triângulo da tristeza tomando de assalto a expressão da face. Como é que se ama “porque sim” depois do enrijecimento da alma? Não existe resiliência na alma; o que existe é a petrificação das variáveis do desejo, esconderijos secretos criados pelos neurotransmissores que mudam a química do nosso cérebro. Amar era mais simples por puro saudosismo — porque, quanto mais se toma con...

Cavar pra cima

Ficou a ressaca dos tempos de guerra. O fim dos ciclos é sempre um fim dos tempos. Na minha trilha sonora do Apocalipse, saxofones sopram (não tão) gentilmente ao fundo. Das minhas múltiplas formas de tentar ser pessoa, queria dizer que me orgulho muito de ser uma mulher combativa, um divisor de águas. Ao mesmo tempo, minha filha me diz que eventualmente eu tenho esse "olhar perfurador de almas" — que, em sua maioria, é minha cara de paisagem. Me chama a atenção, porque me diz que a minha feição está endurecida. Desaguei demais. Meu grande desejo da vez é desanuviar. Jogar pro universo, desapegar do ressentimento, cavar pra cima. Sobreviver ao choque e construir vida depois. E eu sou mulher de segurar a rédea da própria vida nas mãos, rente ao peito, como quem diz que eu posso até estar cansada do combate, mas que "quem tá morta é a Hebe".

Kintsugi

Eu quero fazer o meu rolê e o mundo é complexo . Sei lá. Nesse último semestre a vida tem sido uma loucura, uma vibe meio a esperança dança na corda bamba de sombrinha . Fato que fiquei rançosa com a vida e as pessoas e as relações permeadas até o talo pela imundície do neoliberalismo. Me feriu profundamente encerrar vínculos de longo prazo, lacrar as portas, sumir do mundo ou o mundo sumir de mim. Claro que o meu temperamento colérico de mulher agressiva anseia por uma confusão, uma grande troca de berros olho no olho, pau quebrando, guerra, paulada na nuca. Só que, ao mesmo tempo, eu estou economizando a minha saúde mental, sabe? De saco cheio pra caralho. Eu sou uma operária. A minha alma é apaixonada pela subjetivação que advém do trabalho: o fazer juntos, aprender e ensinar, compartilhar nuances do cotidiano, a sensação de jogar a toalha no fim do expediente e saber que foi a finesse do setor de serviço. Quando o labor é atravessado por outros eixos da existência e desvia um pouco...

Outros mundos

A realização da passagem do tempo foi brutal, esse ano fui o pão que o diabo amassa e o diabo amassando o pão. Revisitei muitas vezes o passado, consegui admitir o meu ressentimento e identificar as faces com as quais ele se apresenta. O campeão na corrida para a minha maior ferida é, sem dúvidas, como o masculino funciona no mundo, essa instituição escancarada da dominação. Acho tenebroso, fico ruminando a falta de sentido que é submeter o outro ao perverso - para mim, o perverso é retirar do outro o direito de ser pessoa. Caralho, sabe? Trinta anos e eu ainda não me sinto gente , inadmissível.  A ruminação é o maior sintoma do ressentimento; talvez me falte coragem 'pra viver fazendo as pazes, ou quase' . Essa última revolução solar foi uma coça, andei em carne viva o ano inteiro, meti o meu louco, sofri muito todos os últimos combates. Tive que reaprender a chorar as dores, senão eu seria por mais tempo aquela que está sempre por um fio e, honestamente, nem posso dizer que e...

Entranha

 Uma das minhas expressões mais populares é a de "apertar uma tora e fumar até babar". Aprecio muito o baseado no fim do dia, quando encerro todos os meus expedientes (trabalho, vida, maternidade, amor) e existo no meu momento que não cabe mais ninguém. Uma bola para cada uma de mim. Um cigarrinho também.  Estou na beirola dos trinta sem paranoia com o envelhecer somático. Em contrapartida, o que me assola se localiza nas vísceras. Desejo dominar a arte de desentranhar as coisas de dentro de mim.

Correspondência

Escrevo essa carta para você, que nunca me escreveu nenhuma. Fico mais recalcada que chateada, mas ligo menos do que acho que ligo. E nem digo que te amo, porque nem tenho certeza. E nem quero que seja meu, porque não sou de ninguém. Tomara que você consiga reivindicar o seu eu esquecido em outras juras de amor; e vendo por essa perspectiva, quem quer juras de amor? Jurar qualquer coisa custa caro demais, imagina jurar amor. Te amo porque sim ou não te amo, não dá pra ficar jurando por aí um dom imerecido. Não se jura de morte, nem de vida, nem de amor. E olha que jurei muito amor e me custou caro demais.  Tem essa música do The Smiths que me captura muito, de formas que se transformam ao longo do tempo. Vivi uma grande fossa com "I know it's over", fiquei na baixa das emoções, provei o gosto amargo de deus quando ele não deu asas a cobra, também quando arrancou o veneno. Hoje escuto como quem sabe que o fim das juras de amor também é o grande luto do romantismo cristão,...

Knowing no more

Tenho revisitado muito a infância e a adolescência. São muitas as raivas e mágoas e reviravoltas. Um amontoado de coisas antigas e novas. O último dos vinte está sendo regido por um retorno de saturno do qual eu fui alertada sobre, o juízo final de um emaranhado de mim, um soco na nuca.  Em 2024 eu desatei vários nós e o que me custou foi um pedaço do meu coração e a minha juventude, ultrapassei os limites de andar em carne viva. Por outro lado ainda bem, é terrivelmente desgastante viver upon the edge of no scape.